A fórmula Netflix

Airbnb e Uber facilitam as trocas entre pares, entre privados: nesse sentido pode-se falar de desintermediação, ou de uma menor intermediação. Criam-se novas oportunidades de negócio, usando a tecnologia disponível para liberar valores que estavam em potência: os apartamentos e os carros já existiam, mas para que tivessem uso comercial era necessários uma plataforma digital e um modelo de negócio. É diferente quando se trata de serviços como Netflix e Spotify, que também mudaram a dinâmica das indústrias onde entraram criando novos canais de consumo de filmes e de músicas que complementaram ou substituíram os canais anteriores. 

Na sua origem, em 1997, a Netflix era um serviço de aluguel de filmes em DVD. Em 1999, incorporou um modelo de assinatura mensal; os filmes eram distribuídos pelo correio. Em 2000, houve uma oferta de venda à Blockbuster, por US$ 50 milhões, mas o negócio não prosperou: para o então gigante de aluguel de vídeos, com uma receita em aumento e uma fórmula de sucesso, não fazia sentido. Em 2004, com 9 mil lojas espalhadas pelo mundo e mais de 60 mil funcionários, a Blockbuster tinha um valor de mercado de US$ 5 bilhões. Faliu apenas seis anos depois; tinha 320 lojas. Hoje há uma única loja da Blockbuster, no interior dos EUA, local de culto onde se pode alugar um DVD, tirar uma foto embaixo do cartaz azul e amarelo ou tomar um chope da cerveja artesanal Last Blockbuster.

O que causou a queda da Blockbuster e o crescimento da Netflix foi a conjunção do modelo de assinatura mensal (hoje a estrela dos negócios digitais) e a tecnologia de streaming ou transmissão contínua, que dispensa o download. Não se arquiva nada no computador pessoal. A tecnologia não somente não ocupa lugar nos discos rígidos, como também permite a reprodução de obras com direitos autorais. A Netflix focou seu negócio na distribuição on-line em 2007 e então a sua base de usuários começou uma curva ascendente que hoje a coloca como um dos serviços mais acessados no mundo. São 200 milhões de pessoas usando Netflix, um terço delas nos EUA, onde soma mais usuários que todas as empresas de TV a cabo juntas. O faturamento anual em 2020 foi de US$ 20 bilhões e o valor de mercado da empresa alcançou os US$ 200 bilhões – 40 vezes o valor que a Blockbuster declinou pagar pela operação e mais do que a Disney valia no mesmo ano.

Na música, a mudança começou no fim do século XX, com usuários compartilhando arquivos digitais por meio de plataformas como Napster e Kazaa e a indústria lutando por vias legais e tecnológicas para impedir o inevitável. Foi como enfrentar um tsunami com sacos de areia. Em abril de 2003, a iTunes Store, da Apple, deu início ao que seria uma mudança radical do negócio da música e do hábito de consumo. Além de uma imensa fonte de receita para os criadores do iPod. Steve Jobs apostava que os fãs queriam acesso fácil e a preços razoáveis aos arquivos de música. O sucesso veio, mais uma vez, de uma combinação de tecnologia (a plataforma, o reprodutor) com a opção revolucionária de baixar músicas individuais por 99 centavos de dólar. Na sua primeira semana no mercado, o iTunes vendeu um milhão de downloads e se tornou o maior varejista de música dos Estados Unidos, transformando-se numa bênção e numa maldição para a indústria da música. O setor parecia ter encontrado finalmente um modelo de distribuição digital aceito pelos consumidores, que acabou de matar o já enfraquecido negócio dos CDs. 

Como ocorreu com os filmes, a música on-line ganhou com o streaming e com o crescimento da banda de transmissão nas casas e nos celulares. O modelo de assinatura inaugurado pela Netflix fez com que os hábitos de consumo mudassem mais uma vez. A plataforma da Apple tem mais de 60 milhões de usuários, mas o campeão do segmento vem da Suécia, com uma fórmula diferente que faz a venda de músicas avulsas parecer pueril. Criado em 2008, o Spotify já superou os 250 milhões de usuários, dos quais metade são pagantes. 

Lojas de CDs deixaram de existir, fábricas tornaram-se inúteis, aparelhos reprodutores juntam poeira. A cadeia de negócio como um todo mudou e as grandes empresas fonográficas precisaram encontrar outras formas de ganhar dinheiro. Foi necessário compreender a lógica de um mundo novo, muito mais do que apenas de uma forma diferente de se distribuir música. 

O conceito de cauda longa, ou long tail, mostra como a soma de muitos pequenos grupos faz um grande mercado. Levado ao limite, significa que as grandes empresas irão atender cada usuário de maneira única, ajustando o produto em função de seus gostos e de suas preferências. Isso vale especialmente para operações como Spotify e Netflix.

Existem 200 milhões de versões diferentes da Netflix, uma para cada usuário. Para conseguir isso, o volume e a complexidade dos dados que a Netflix processa são impressionantes. Começa com as estrelas com que cada usuário qualifica os filmes que assistiu, mas ganha força com o algoritmo que registra todas as vezes em que alguém retrocede, avança e pausa um filme, suas buscas, a localização geográfica, dia da semana e hora, tempo dedicado a cada cena. Isso tudo é cruzado e enriquecido com o que se chama de metadados: informações de empresas de pesquisa e redes sociais. Predizer as escolhas de um ser dotado de livre-arbítrio é sempre um desafio, mas empresas como a Netflix estão avançando rapidamente nesse sentido.

Condição do ser humano e diferencial competitivo, a comunicação evolui acompanhando a evolução da humanidade desde seu nascimento. Acompanhando ou conduzindo: melhoras na capacidade se comunicar são causa e consequência de muitas das rupturas e das mudanças mais marcantes da história. Não é diferente no século que nos toca. Comprovamos em tempo real como o progresso da tecnologia e suas consequências nas formas de produzir e trocar informações e conhecimento mudam o mundo em que vivemos.  As duas primeiras décadas do século mostraram impactos em cada aspecto da vida: na economia, no trabalho, na educação, na família, na saúde, nas artes, nas ciências. E na política, claro. Foco de nossa próxima seção, a ruptura provocada pela capacidade de trocar informações e construir saberes e identidades em rede.

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