Fake news não são privilégio do jornalismo. Existe um mundo lucrativo de falsas publicações científicas. Journal of Economics and Finance é uma revista de seriedade inquestionável onde é difícil ser publicado. Então, alguém criou o Journal of Finance and Economics, que não passa de um engodo; o objetivo é cobrar de pesquisadores que não são aceitos no primeiro. Alguns aceitam pagar por estarem desavisados, outros porque precisam, de qualquer jeito, aparecer em publicações científicas (ou “científicas”). E o negócio rende: há mais cópias desse tipo do que publicações científicas sérias. Pense no dano que ele pode fazer quando um médico incauto usa um artigo feito por um pesquisador incompetente e publicado em um periódico de aparência séria.
As falsas revistas científicas deturpam o modelo do movimento Open Access, literalmente “acesso aberto”, que busca facilitar a disseminação e o acesso a conteúdos científicos. Um dos objetivos do movimento é desenvolver meios e formas para avaliar contribuições em acesso livre e jornais on-line de forma a assegurar os padrões de qualidade e as boas práticas científicas, para que as publicações em acesso livre sejam reconhecidas para efeitos de avaliação e progressão acadêmica. Isso claramente põe em xeque as editoras que vivem dos altos preços que cobram pelas publicações acadêmicas.
O caso das revistas científicas é exemplar da forma como a nova tecnologia, somada à globalização, mudou o sistema dos meios de comunicação de massa. O jornalismo mudou de cara e de local, de velocidade e de função na construção de uma opinião pública e na sua relação com a sociedade e com o poder. Publicações que eram referências inquestionáveis sumiram ou sofrem para ainda ser ouvidas: são os tiranossauros rex da mídia, que têm sua primazia questionada. Estamos presenciando uma metamorfose em tempo real e, ainda que algumas tendências sejam claras, seria ousado demais vaticinar a configuração final.
Meios, anunciantes, agências, veículos, distribuidores, consumidores e outros formam o que se chama de sistema complexo. Um sistema complexo é composto de partes que interagem e que nessa interação geram novas qualidades no comportamento coletivo. São difíceis de se estudar porque seu comportamento não é previsível a partir do conhecimento das partes: quando elas interagem, surge o novo, o inesperado. Mais e mais cientistas estão aplicando a noção de sistemas complexos para o estudo de áreas da sociedade, a economia, a consciência, as empresas.
Ecossistemas também são sistemas complexos, e podemos pensar o conjunto dos meios de comunicação como um ecossistema. Nele cada agente tem sua função, em equilíbrios dinâmicos e instáveis, mas que em situação normal seguem certo padrão previsível. Há os grandes predadores onívoros, os exploradores de nichos e os pequenos herbívoros, há uma cadeia de energia que circula entre audiências e receitas publicitárias, em construção de marcas e de hábitos de consumo de informação, educação e entretenimento. Até que um dilúvio arrasa com tudo o que era normal e instala algo novo, e cada uma das partes deve se reacomodar a novas funções, entre outras coisas, pela interação com os outros agentes. Uma publicação periódica sobre assuntos atuais, que aparece em intervalos curtos o bastante para que os leitores se mantenham a par das notícias: isso é um jornal. O primeiro foi o de Johann Carolus: Relation aller Fürnemmen und Gedenckwürdigen Historien (Relação de Todas as Notícias Distintas e Comemoráveis), publicado em Estrasburgo em 1605. Carolus vivia até então de distribuir, entre cidadãos ricos, notícias copiadas à mão em folhas de papel. Se a necessidade criou demanda e a inteligência um serviço, a inovação técnica permitiu escalar o negócio e alcançar um público bastante maior. Numa carta feita aos seus leitores, Carolus descreve o processo de nascimento do jornal:
Visto que até agora distribuí os conselhos semanais de notícias (boletins de notícias manuscritos) em troca de um valor, mas como as cópias eram lentas e levavam necessariamente muito tempo e visto que adquiri recentemente a um preço alto e dispendioso a antiga oficina de impressão do falecido Thomas Jobin, e a coloquei e instalei em minha casa, com não pouca despesa, para ganhar tempo, e desde há várias semanas, e agora pela décima segunda ocasião, estabeleci, imprimi e publiquei o referido conselho em minha oficina de impressão, mas ainda não sem muito esforço, na medida em que em todas as ocasiões tive que remover os tipos das prensas […].
A inovação se espalhou rapidamente pela Europa. Em 1610, parece ter havido um semanário impresso na cidade de Basileia e até 1620 já havia jornais em Frankfurt, Viena, Hamburgo, Berlim, Amsterdã e Antuérpia. O primeiro jornal semanal impresso na Inglaterra apareceu em 1621. A França não produziu nenhum por conta própria até 1631, mas os editores de Amsterdã já exportavam semanários em francês e inglês desde 1620. O primeiro semanário impresso da Itália apareceu ao mais tardar em 1639, e na Espanha em 1641.
Com a Revolução Industrial e o aumento da atividade econômica nas metrópoles, os jornais cresceram. O diário The Times, de Londres, vendia mais de 10 mil exemplares em 1830, em uma cidade de 2 milhões de habitantes; em 1855, a tiragem estava em quase 60 mil exemplares. Foi então que o imposto sobre a impressão e o papel, considerado por seus detratores uma barreira ao acesso ao saber, foi revogado, liberando a proliferação de jornais menores. Em 1864, havia 96 diários de província na Inglaterra, e Londres contava com 18. Edward Baines, proprietário do liberal Leeds Mercury, proclamava orgulhoso que, de um total anual de 546 milhões de cópias de jornais, 340 milhões eram de órgãos da província.
Nos Estados Unidos, o The Sun nasceu em 1833 e cinco anos depois já vendia 34 mil cópias, principalmente nas esquinas de Nova York. O New York Herald foi lançado em 1835por Gordon Bennet, que declarava que a sua missão era fazer da imprensa escrita o grande órgão e pivô do governo, sociedade, comércio, finanças, religião e de toda a civilização humana.
O Tribune, lançado em 1824, incluía artigos enviados da Europa por Karl Marx e excluía algumas notícias nacionais, recusando-se a imprimir detalhes sobre crimes, reportagens sobre julgamentos e peças de teatro. Considerava-se o “grande órgão moral” e se acreditava autossuficiente no suprimento de notícias. Nascia o jornalismo que iria se consagrar como modelo da grande imprensa norte-americana. Um impulso grande nesse sentido foi o surgimento, em 1851, do New York Times, “um jornal sensato e sensível”, fundado por Henry Raymond com a missão de diferenciar claramente “notícias” de “pontos de vista”. “Nós não acreditamos que cada coisa na sociedade seja completamente certa ou errada; desejamos preservar e melhorar o que é bom; e exterminar e reformar o que é ruim”, dizia seu fundador.
Nesse contexto, a imprensa já estava ciente da própria importância e se colocava num lugar central em relação ao poder, um ponto de equilíbrio entre poder econômico e poder político. Mostra disso é a postura do acadêmico, jornalista e político inglês, o teórico do liberalismo Leonard Trelawny Hobhouse, que exigia da imprensa cumprir sua missão de ser um “órgão da democracia” e criticava o “monopólio de alguns homens ricos” em que ela vinha se tornando.
Na Inglaterra, o Westminster Review, fundado em 1842, descreve os jornais como: “os melhores e mais confiáveis civilizadores do país. Contêm em si mesmos, além dos elementos do conhecimento, os incentivos para aprender. É preciso ver um povo que não tenha sido atingido pelos jornais para conhecer a quantidade de preconceitos que esses produtos dissipam instantânea e necessariamente”.
O Times, dominante na imprensa em Londres, se considerava um “quarto poder”. Não há consenso sobre a origem dessa expressão, empregada para descrever a importância da mídia no jogo democrático e para defender a independência do jornalismo. Foi usada por um parlamentar, Edmund Burke, em um debate, em 1787. A expressão “quarto estado” (traduzida a outras línguas como quarto poder) serviu de título de um livro sobre a imprensa britânica, publicado em 1850 pelo jornalista Frederick Knight Hunt: The Fourth Estate: Contributions towards a History of Newspapers and of the Liberty of the Press (O quarto estado: contribuições para uma História dos jornais e da liberdade de imprensa).
Independentemente da sua origem, a expressão reflete uma visão sobre a imprensa que imperou ao longo de boa parte do século XX e ainda guarda sentido. Oscar Wilde, em um libelo publicado em 1891 sob o título The soul of man under socialism (A alma do homem sob o socialismo), escreveu que o poder do jornalismo era excessivo. Hoje, autores como o sociólogo francês Ignacio Ramonet defendem a necessidade de um quinto poder, capaz de se contrapor ao “poder sem contrapoder” da mídia excessivamente concentrada.
A relação entre os meios de comunicação e o poder foi assunto de debate e preocupação em boa parte do século XX. As duas Grandes Guerras e o advento primeiro do rádio e em sequência da TV despertaram o interesse de alguns teóricos e críticos da Alemanha, que viram no fenômeno que começou a ser chamado de media, ou de mass media, um método de manutenção do status quo, de relações de dominação ideológica. Nasceram os conceitos de opinião pública e de indústria cultural. Na França, falava-se da “sociedade do espetáculo”: a multiplicação de imagens e ícones pelos meios de comunicação de massa.
Mais otimista que seus pares europeus, o canadense Marshall McLuhan cunhou a noção de “aldeia global”: o mundo tornava-se cada vez menor; a comunicação entre os homens mais rápida e fácil; as fronteiras deixavam de existir; e os regionalismos e culturas nacionais já não eram considerados empecilhos para a comunicação. Seus escritos dos anos 1960 e 1970 parecem estar falando de nossa época. Ideias, padrões e valores socioculturais e imaginários formariam um sistema comunicacional capaz de moldar uma cultura de massa, de constituir um mercado de bens culturais e universos de signos e símbolos, um conjunto de linguagens e significados que povoam o modo pelo qual uns e outros se situam no mundo, ou pensam, imaginam, sentem e agem.
Se o trabalho de McLuhan impressiona pela capacidade de antecipar muito do que estamos vivendo, o que dizer do cientista e inventor Nikola Tesla, norte-americano nascido na atual Croácia, que declarou em uma entrevista em 1926:
Quando a tecnologia sem fio for aplicada perfeitamente, toda a Terra será convertida em um cérebro enorme, o que de fato é, todas as coisas sendo partículas de um todo real e rítmico. Poderão se comunicar instantaneamente, independentemente da distância. Não apenas isso, mas através da televisão e da telefonia veremos e ouviremos perfeitamente como se estivéssemos cara a cara, apesar das distâncias intermediárias de milhares de quilômetros; os instrumentos através dos quais poderemos fazer isso serão incrivelmente simples em comparação com o nosso telefone atual. Um homem será capaz de carregar um no bolso do colete.
1 “Johan Carolus’s ‘Relation’, the First Printed European Newspaper”, em History of information, 2015. Disponível em <http://www.historyofinformation.com/detail.php?id=34>, acesso em 10 nov. 2019 [tradução minha].
2 Apud Chong Celena, “The inventor that inspired Elon Musk and Larry Page predicted smartphones nearly 100 years ago”, em Business insider, 2015. Disponível em <https://www.businessinsider.com/tesla-predicted-smartphones-in-1926-2015-7>, acesso em 20 nov. 2019 [tradução minha].